O injusto senso de justiça e o sermão do bom ladrão

Imagem: glaucocortez
Fernando Sabino é mesmo sabido. Colocou famoso jargão do Direito no seu devido lugar ao afirmar que “para os pobres, é dura lex, sed lex. A lei é dura, mas é a lei. Para os ricos, é dura lex, sed latex. A lei é dura, mas estica”. Não temos visto outra coisa quando nos deparamos com notícias sobre ricos e políticos quando estes se envolvem em processos judiciais. Há sempre aquela "brecha" na lei que "bons" advogados conseguem encontrar para livrar seus endinheirados clientes da responsabilidade do crime cometido, ainda que todas as evidências "gritem" em letras luminosas: "CULPADO!"

A incoerência da justiça brasileira é tal que se por um lado ela considera crime qualquer tipo de discriminação, por outro dá direito a "cela especial" para autoridades e graduados (curso superior) em casos de prisões processuais. Além de discriminatória, esta lei atenta contra um fator não observado, porém de suma importância, que é a RESPONSABILIDADE PELO CONHECIMENTO ADQUIRIDO.


Ora, se um conjunto de leis protege crianças e adolescentes com a justificativa de que estes não têm responsabilidade pelos seus atos porque "não sabem o que fazem", então  crimes cometidos por adultos necessitariam ser interpretados utilizando o mesmo raciocínio, isto é, considerar o nível de conhecimento do indivíduo como atenuante ou agravante para a sua pena. Assim sendo, se tivessem que privilegiar alguém com a "prisão especial", que fosse para o analfabeto e não para aqueles que têm uma compreensão muito maior da responsabilidade moral do indivíduo perante a sociedade.

Se um magistrado  resolvesse utilizar seus conhecimentos para cometer atos ilícitos, não seria o mesmo que um médico usar da Medicina para matar? E o que se dirá de um legislador que criasse leis com o único objetivo de ser beneficiado por elas? Ou de um governador que comprasse para si um enorme latifúndio a preço irrisório e depois mandasse construir uma estrada passando pelo meio dessas terras para aumentar significativamente o seu valor, além de obter uma considerável cifra de dinheiro público com as indenizações? Ou jornalista, advogado, engenheiro, professor ou qualquer outro profissional com diploma de curso superior que se desarvorasse a usar dos seus conhecimentos para aplicar golpes de toda ordem?

Charge (autorizada): Bruno Venancio
Se atentarmos para o conceito de "doloso", isto é, atitude consciente de causar algum dano a outro(s) indivíduo(s), estes não seriam atos muito mais maquiavélicos e repulsivos do que a de um ignorante (no sentido literal da palavra) que num momento de desespero subtrai a galinha alheia para matar a própria fome ou dos seus? E porque o ladrão de galinhas iria parar numa cela comum e estes não? Que moral algum deles teria para obter tal privilégio? Isso se eles fossem presos, porque sempre existirá um caríssimo advogado para livrá-los da "cana". E o ladrão de galinhas? Ó, coitado!... Iria "penar" por longo tempo atrás das grades.

No início deste ano uma proposta do Senado tentou acabar com a "prisão especial", mas  os deputados (que são legisladores) resolveram rejeitar. Segundo uma notícia do G1 na época sobre tal mudança,
"O benefício passaria a ser concedido por ordem do juiz ou do delegado a qualquer pessoa que tivesse a integridade física ameaçada. Os deputados argumentaram que a proposta daria muito poder aos juízes e delegados e por isso decidiram rejeitar a modificação."
O que seria dar “muito poder aos juízes e delegados”? Poder para colocar até mesmo políticos em celas comuns?  E qual o problema? O que é para uns, deve ser para todos indistintamente, sem qualquer regalia ou discriminação, não é verdade? Parafraseando certo personagem criado pelo Chico Anysio, isso sim seria justo, muito justo, justíssimo...

Muito antes de Sabino e de Chico Anysio, tivemos o padre Antonio Vieira, o sábio. Em 1655 ele escreveu um sermão que se encaixa perfeitamente na atual forma de julgamento diferenciado para pobres e ricos.  Encerro o post com este sermão para uma profunda reflexão e para lembrar os senhores legisladores que já faz onze anos que adentramos no século XXI e que, portanto, está mais do que na hora de evoluir e mudar!

Que assim seja!

O Sermão do Bom Ladrão:

"Navegava Alexandre Magno em uma poderosa armada pelo Mar Vermelho, com o intuito de conquistar a Índia. Em uma das aldeias conquistadas, trouxeram à sua presença um pirata, que por ali andava roubando os pescadores. Alexandre o repreendeu com severidade por andar em tão mau ofício; porém, o pirata, que não era medroso, nem lerdo, respondeu assim: Basta, Senhor! Porque eu roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, é imperador?

Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza. O roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. (…)

O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno; os que não só vão, mas levam, de que eu falo, são outros ladrões de maior calibre e da mais alta esfera; (…). Não só são ladrões os que cortam bolsas ou espreitam os que vão se banhar para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem lhes é dado o governo dos estados, ou a administração das cidades, ou ainda a representação do povo, os quais com astúcia e malícia, já com o poder, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam países e cidades; os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo; os outros se furtam são enforcados; estes furtam e enforcam.

Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu uma grande tropa de políticos e ministros da justiça levar uns ladrões para a forca, e começou a bradar: Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos! Afortunada Grécia que tinha tal pregador! E mais afortunadas as outras nações, se nelas não sofre a justiça as mesmas afrontas. Quantas vezes viu-se em Roma, enforcarem um ladrão por ter roubado um carneiro; e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul, ou ditador, por ter roubado um país."

(Padre Antônio Vieira, em O Sermão do Bom Ladrão)

4 comentários:

  1. http://pratesnosbt.com.br/2011/09/17/gracas-senhor/

    Essa crônica GRAÇAS, SENHOR, parece dialogar com esta sua.Leia, por gentileza.

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  2. Tem razão, Máyda. Notei também que o texto do Prates não se relaciona só com este post. A terrível somatização que segundo ele o "mea culpa" acarreta no indivíduo também está implícita no "O caos aparente e o mundo das aparências", quando digo que aquele que entra pelos caminhos da desonestidade acabam se distanciando daquilo que chamamos felicidade. Tem quem não acredite, mas o peso de consciência existe e consome o indivíduo lentamente. Isso nos leva a afirmar que Deus, boníssimo que é, não castiga ninguém. Ele nos concedeu o livre-arbítrio para que façamos o que nos der na telha, porém não sem antes nos dotar de Consciência de modo a sermos os juízes das nossas próprias ações.

    Como diz o Prates, podemos mentir para o mundo, porém jamais mentiremos para nós mesmos, não é vero? Saulo de Tarso, ou apóstolo Paulo, por este mesmo motivo já dizia que "tudo me é lícito, mas nem tudo me convém". Obviamente que isso está ligado ao nível de discernimento de cada um e como deveria também ser na lei civil, tal como falo no texto. Quanto mais se sabe, maior é a cobrança íntima.

    É assim que é, amiga linda.

    Beijos no coração...

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  3. Uma pequena falha.

    Escrevi "Obviamente que isso está ligado ao nível de discernimento de cada um e como deveria também ser na lei civil, (...)".

    Onde está "lei civil" entenda código penal.

    Erar é o mano. rsrs

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